QUESTÃO SERÁ DEBATIDA NESTA SEGUNDA-FEIRA EM AUDIÊNCIA PÚBLICA
O presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ), Luiz Antonio Cosenza, alerta que a demissão de 50 funcionários concursados, com 25 a 40 anos de experiência, realizada no último dia 15 de março pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), não apenas diminui o valor empresa, como põe em risco o abastecimento de 13 milhões pessoas atendidas em 64 municípios do estado.
A questão será debatida nesta segunda-feira (25/03) pela Comissão de Saneamento Ambiental da Assembleia Legislativa (Alerj) em uma audiência pública para a qual foi convidado a prestar esclarecimentos o presidente da Cedae, Hélio Cabral. A reunião acontecerá às 9 horas, no Plenário Barbosa Lima Sobrinho, no Palácio Tiradentes. Uma carta de repúdio às demissões com a assinatura de 11 entidades ligadas à área será distribuída durante o encontro.
“Vamos cobrar esclarecimentos sobre os atos que levaram às demissões e sobre os procedimentos adotados em relação ao abastecimento de água e às questões de saneamento no estado”, afirma o presidente da comissão, deputado Gustavo Schmidt (PSL). A demissão destes engenheiros com cerca de dois mil anos somados de experiência vem movimentando as entidades de classe e a sociedade. O Plano Estratégico da Cedae 2017/2021 destaca como uma das forças da companhia o seu “corpo técnico qualificado”. Os riscos para a população são grandes já que estes funcionários guardam a memória da empresa e constituíam o pilar da companhia.
O desligamento também é questionável porque diz respeito a funcionários concursados. A cláusula 41 do Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) que prevê a possibilidade de dispensa de 1% do quadro funcional após cada negociação de dissídio não significa uma licença para demitir, mas a garantia de emprego para 99% dos trabalhadores. Além disso, 1% só pode ser dispensado diante de motivação de ato administrativo, como ocorre com qualquer concursado.
Quanto valem quase dois mil anos somados de experiência profissional? Para o novo presidente da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), Hélio Cabral, a resposta é: nada. No dia 15 de março de 2019, 50 funcionários concursados, a maioria engenheiros com 25 a 40 anos de casa, foram demitidos. O ato atingiu os pilares da empresa, removendo dela profissionais com grande conhecimento técnico e gerencial, o que causa graves riscos para cerca de 13 milhões de pessoas em 64 municípios do Estado do Rio de Janeiro atendidas pela companhia.
A alegação de que era preciso economizar eliminando os maiores salários da empresa não se justifica diante do lucro registrado em 2018, de R$ 750 milhões. Se a explicação fosse verdadeira, a companhia teria parado de contratar funcionários extraquadros, muitos sem qualquer experiência e com salários altos, o que não aconteceu. Também não teria criado um jeton por reunião da diretoria no valor de R$ 1.500.
Além disso, a cláusula 41 do Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) que prevê a possibilidade de dispensa de 1% do quadro funcional após cada negociação de dissídio não significa uma licença para demitir, mas a garantia de emprego para 99% dos trabalhadores. Evidentemente, esse 1% só pode ser dispensado diante de motivação de ato administrativo, como ocorre com qualquer concursado.
A Cedae é uma companhia de economia mista, superavitária, e os salários de seus funcionários são compatíveis com o que é pago no setor. A companhia foi eleita em 2018 pela Revista Exame como a melhor empresa de infraestrutura do Brasil e seu Planejamento Estratégico para 2017-2021 aponta como uma das principais forças o seu “corpo técnico qualificado”. Logo, estas dispensas impactam também no valor da companhia.
Curioso o fato de que pelo menos um diretor, contratado recentemente após as demissões, tenha deixado a direção de uma empresa privada, que tem interesse na privatização da companhia, para receber um salário muito menor na Cedae. O que explica o altruísmo?
A verdade é que estas demissões têm motivação política e visam a acelerar o processo de privatização da Cedae. Elas fragilizam o sistema de saneamento e abastecimento de água do estado, que se constitui em uma engrenagem extremamente complexa com maquinários feitos especialmente para a companhia, que só existem na Cedae. A memória destes funcionários, com média de 30 anos de casa, precisa ser preservada e transmitida.
Diante de tudo isso, a pergunta que deve ser feita não é o quanto custa ter estes profissionais, mas o quanto eles valem para a empresa e para a sociedade.
A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) tem prazo de 60 dias para entregar à Assembleia Legislativa (Alerj) um plano de gestão com uma análise de risco para justificar a demissão de 50 funcionários concursados, com 25 a 40 anos de experiência, ocorrida no último dia 15 de março. A determinação foi feita durante audiência pública realizada pela Comissão de Saneamento Ambiental da Alerj nesta segunda-feira (25/03). Diante da saída deste corpo técnico extremamente qualificado, os deputados presentes se mostraram preocupados com um possível colapso no serviço oferecido às 13 milhões de pessoas atendidas pela Cedae no Estado do Rio. “Queremos saber o que de fato vai ser feito diante destas demissões, que a nosso ver, foram totalmente equivocadas“, afirmou o presidente da comissão, o deputado estadual Gustavo Schmidt (PSL), que prometeu entrar em contato com o governador Wilson Witzel ainda nesta segunda-feira para tentar reverter a decisão.
Foram solicitadas também as listas com os salários dos 50 funcionários afastados e dos 134 comissionados que trabalham hoje na empresa. “A justificativa da Cedae foi de que estavam sendo eliminados os salários mais altos. Existem muitas outras formas de se fazer economia para investir em saneamento. Cortar a cabeça de uma empresa como a Cedae não é a melhor delas”, disse Schmidt. Durante mais de três horas de reunião no Plenário do Palácio Tiradentes, deputados pressionaram o presidente da Cedae, Hélio Cabral, sobre o que estaria por trás das demissões. “Não dá para fazer tudo na perna, sem plano de gestão de risco. Não estou aqui para discutir se existe briga política entre pastores. Pastor não pode ser belicoso. Pastor deveria promover a paz”, disse o deputado Luiz Paulo (PSDB).
Já a deputada Lucinha (PSDB), vice-presidente da comissão, ressaltou que o mais importante nesta discussão não é o valor dos salários, mas sim a competência destes profissionais que, somados, têm cerca de dois mil anos de experiência. “Se esses engenheiros têm um bom salário, isso é fruto do trabalho e da dedicação deles. Agora esses cargos serão preenchidos por quem?”, perguntou a deputada que aventou a hipótese destas demissões terem como objetivo final a privatização da Cedae.
Alguns deputados ressaltaram o fato de que profissionais da iniciativa privada estão sendo convidados pela presidência da Cedae para postos de diretoria o que reforçaria esta hipótese. Gustavo Schmidt citou a contratação de Alexandre Bianchini, ex-diretor de uma empresa privada com concessões na área de água e esgoto no Brasil. Hélio Cabral não soube explicar porque Bianchini teria aceitado ir para a Cedae ganhando três vezes menos do que na iniciativa privada. “Não sei qual foi a motivação pessoal dele. Mas na vida profissional às vezes a gente da um passo atrás para dar dois à frente “, afirmou o presidente.
A adoção de um Programa de Demissão Voluntária (PDV) foi sugerida por alguns dos deputados presentes como uma saída para este impasse. “Assim, estes funcionários que se dedicaram por mais de 30 anos à Cedae podem sair de cabeça erguida da companhia que eles ajudaram a construir ao longo de suas vidas”, afirmou Lucinha.
Muitos dos funcionários demitidos assistiram emocionados à audiência pública. Eles contestaram a alegação de que recebem altos salários, justificativa usada como critério para as demissões. Afirmaram que seus vencimentos não são aqueles apresentados pela presidência da Cedae e que os valores estão de acordo com o tempo de serviço e o nível de qualificação de todos. O engenheiro Edes Fernades, com 40 anos dedicados à companhia, afirmou que os empregados, em sua maioria, recebem apenas os proventos regulamentados pelas regras salariais da própria empresa. “Se não tivessem sido promovidos em 25 anos de trabalho, talvez não estivessem neste lista negra”, disse.
O presidente da Cedae reafirmou durante a audiência pública que que o critério usado para selecionar os funcionários que seriam de demitidos foi o salarial mas não soube explicar qual a linha de corte usada. Segundo ele, o dinheiro será direcionado para obras de saneamento da Rocinha, Zona Sul do Rio. Hélio Cabral garantiu ainda que todas as suas decisões contam com o respaldo do governador com quem se reuniria semanalmente para discutir o plano de reestruturação da empresa.
Nesta terça-feira (26/03), haverá uma audiência de mediação no Ministério Público do Trabalho entre a Cedae e o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (SENGERJ).
Enquanto iniciativas para privatizar sistemas de saneamento avançam no Brasil, um estudo indica que esforços para fazer exatamente o inverso – devolver a gestão do tratamento e fornecimento de água às mãos públicas – continua a ser uma tendência global crescente.
De acordo com um mapeamento feito por onze organizações majoritariamente europeias, da virada do milênio para cá foram registrados 267 casos de “remunicipalização”, ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. No ano 2000, de acordo com o estudo, só se conheciam três casos.
Satoko Kishimoto, uma das autoras da pesquisa publicada nesta sexta-feira, afirma que a reversão vem sendo impulsionada por um leque de problemas reincidentes, entre eles serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. Ela é coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda.
“Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso”, explica Satoko à BBC Brasil.
O estudo detalha experiências de cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás – uma longa lista que inclui lugares como Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz.
Privatizações a caminho
A tendência, vista com força sobretudo na Europa, vai no caminho contrário ao movimento que vem sendo feito no Brasil para promover a concessão de sistemas de esgoto para a iniciativa privada.
O BNDES vem incentivando a atuação do setor privado na área de saneamento, e, no fim do ano passado, lançou um edital visando a privatização de empresas estatais, a concessão de serviços ou a criação de parcerias público-privadas.
À época, o banco anunciou que 18 Estados haviam decidido aderir ao programa de concessão de companhias de água e esgoto – do Acre a Santa Catarina.
O Rio de Janeiro foi o primeiro se posicionar pela privatização. A venda da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) é uma das condições impostas pelo governo federal para o pacote de socorro à crise financeira do Estado.
A privatização da Cedae foi aprovada em fevereiro deste ano pela Alerj, gerando polêmica e protestos no Estado. De acordo com a lei aprovada, o Rio tem um ano para definir como será feita a privatização. Semana passada, o governador Luiz Fernando Pezão assinou um acordo com o BNDES para realizar estudos de modelagem.
Da água à coleta de lixo, 835 casos de reestatização
Satoko e sua equipe começaram a mapear as ocorrências em 2007, o que levou à criação de um “mapa das remunicipalizações” em parceria com o Observatório Corporativo Europeu.
O site monitora casos de remunicipalização – que podem ocorrer de maneiras variadas, desde privatizações desfeitas com o poder público comprando o controle que detinha “de volta”, a interrupção do contrato de concessão ou o resgate da gestão pública após o fim de um período de concessão.
A análise das informações coletadas ao longo dos anos deu margem ao estudo. De acordo com a primeira edição, entre 2000 e 2015 foram identificados 235 casos de remunicipalização de sistemas de água, abrangendo 37 países e afetando mais de 100 milhões de pessoas.
Nos últimos dois anos, foram listados 32 casos a mais na área hídrica, mas o estudo foi expandido para observar a tendência de reestatização em outras áreas – fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, transporte, educação, saúde e serviços sociais, somando um total de sete áreas diferentes.
Em todas esses setores, foram identificados 835 casos de remunicipalização entre o ano de 2000 e janeiro de 2017 – em cidades grandes e capitais, em áreas rurais ou grandes centros urbanos. A grande maioria dos casos ocorreu de 2009 para cá, 693 ao todo – indicando um incremento na tendência.
O resgate ou a criação de novos sistemas geridos por municípios na área de energia liderou a lista, com 311 casos – 90% deles na Alemanha.
A retomada da gestão pública da água ficou em segundo lugar. Dos 267 casos, 106 – a grande maioria – foram observados na França, país que foi pioneiro nas privatizações no setor e é sede das multinacionais Suez e Veolia, líderes globais na área.
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Image captionEstação de Tratamento de Água (ETA) Guandu, em Nova Iguaçu (RJ)
Fácil fazer, difícil voltar atrás
De acordo com o estudo, cerca de 90% dos sistemas de água mundiais ainda são de gestão pública. As privatizações no setor começaram a ser realizadas nos anos 1990 e seguem como uma forte tendência, em muitos casos impulsionadas por cenários de austeridade e crises fiscais.
Satoko diz ser uma “missão impossível” chegar a números absolutos para comparar as remunicipalizações, de um lado, e as privatizações, de outro. Estas podem ocorrer em moldes muito diferentes, seja por meio de concessões de serviços públicos por determinados períodos, privatizações parciais ou venda definitiva dos ativos do Estado.
Entretanto, ela frisa a importância de se conhecer os riscos que uma privatização do fornecimento de água pode trazer e as dificuldades de se reverter o processo.
“Autoridades que tomam essa decisão precisam saber que um número significativo de cidades e estados tiveram razões fortes para retornar ao sistema público”, aponta Satoko.
“Se você for por esse caminho, precisa de uma análise técnica e financeira muito cuidadosa e de um debate profundo antes de tomar a decisão. Porque o caminho de volta é muito mais difícil e oneroso”, alerta, ressaltando que, nos muitos casos que o modelo fracassou, é a população que paga o preço.
Como exemplo ela cita Apple Valley, cidade de 70 mil habitantes na Califórnia. Desde 2014, a prefeitura vem tentando se reapropriar do sistema de fornecimento e tratamento de água por causa do aumento de preços praticado pela concessionária (Apple Valley Ranchos, a AVR), que aumentou as tarifas em 65% entre 2002 e 2015.
Litígios dispendiosos
A maioria da população declarou apoio à remunicipalização, mas a companhia de água rejeitou a oferta de compra pela prefeitura. Em 2015, a cidade de Apple Valley entrou com uma ação de desapropriação, e o processo agora levar alguns anos para ser concluído.
Satoko afirma que há inúmeros casos de litígios similares, extremamente dispendiosos aos cofres públicos e que geralmente refletem um desequilíbrio de recursos entre as esferas públicas e privadas.
“Quando as autoridades locais entram em conflito com uma companhia, vemos batalhas judiciais sem fim. Em geral, as empresas podem mobilizar muito mais recursos, enquanto o poder público tem recursos limitados, e muitas vezes depende de dinheiro proveniente de impostos para enfrentar o processo.”
Outro exemplo que destaca é o de Berlim, onde o governo privatizou 49,99% do sistema hídrico em 1999. A medida foi extremamente impopular e, após anos de mobilização de moradores – e um referendo em 2011 -, ela foi revertida por completo em 2013. Foi uma vitória popular, diz Satoko, mas por outro lado o Estado precisou pagar 1,3 bilhão de euros para reaver o que antes já lhe pertencia.
“É um caso muito interessante, porque a iniciativa popular conseguiu motivar a desprivatização”, diz Satoko. “Mas isso gerou uma grande dívida para o Estado, que vai ser paga pela população ao longo de 30 anos.”
Realidade brasileira
Já tem uma década que a Lei do Saneamento Básico entrou em vigor no Brasil, mas metade do país continua sem acesso a sistemas de esgoto.
De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 50,3% dos brasileiros têm acesso a coleta de esgoto. Para a outra metade do país – 100 milhões de pessoas – o jeito de lidar com dejetos é recorrer a fossas sanitárias ou jogar o esgoto diretamente em rios. Já o abastecimento de água alcança hoje 83% dos brasileiros.
O economista Vitor Wilher afirma que não se pode ignorar esse cenário. Especialista do Instituto Millenium, ele considera que, no Brasil, a privatização seria uma solução do ponto de vista técnico e pragmático.
Ao deter controle de outras áreas que poderiam ser geridas pela iniciativa privada – como saneamento básico, correios, indústria de petróleo – o Estado brasileiro não consegue oferecer serviços básicos de qualidade, como segurança, educação e saúde, afirma.
“Na situação a que chegamos, porém, é meio irrelevante discutir se o Estado brasileiro deveria ou não cuidar dessas áreas. Porque o fato é que o Estado não tem mais recursos para isso”, diz o economista.
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Image captionGovernador do Rio, Luiz Fernando Pezão (direita), assina acordo de cooperação técnica com presidente do BNDES, Paulo Rabello de Castro, para que o banco faça a modelagem da concessão da Cedae.
“Os recursos estão de tal sorte escassos que ou o Estado privatiza, ou essas áreas ficam sem investimento. Hoje mais de metade da população não tem saneamento básico. Um Estado que gera um deficit primário da ordem de quase R$ 200 bilhões ao ano não tem qualquer condição de fazer os investimentos públicos necessários no setor.”
Moeda de troca para austeridade
O caso do Rio, e da Cedae, é semelhante ao de outros países em que a privatização de serviços públicos é exigido por instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial como contrapartida para socorro financeiro.
Satoko lembra o caso da Grécia, onde a privatização das companhias de água que abastecem as duas maiores cidades do país, Atenas e Thessaloniki, era uma das exigências do programa de resgate ao país.
“É um approach absolutamente injusto, porque a companhia de águas é vendida meramente para pagar uma dívida. Mas, com isso, o dinheiro entra no orçamento público e imediatamente desaparece. Depois disso, a empresa já saiu das mãos públicas – ou indefinidamente, ou por períodos de concessão muito longos, que costumam ser de entre 20 a 30 anos”, pondera.
No papel, a Cedae é uma empresa de economia mista, mas o governo estadual do Rio detém 99,9% das ações. A companhia atende cerca de 12 milhões de pessoas em 64 municípios.
“No caso específico da Cedae, a entrega da gestão a iniciativa privada é ainda mais justificada”, considera Wilher, do Instituto Millenium.
“Além de a situação fiscal do Rio ser crítica, a Cedae não tem serviços de tratamento de água e esgoto satisfatórios há décadas”, diz ele, citando como contraponto o caso de Niterói, cidade vizinha ao Rio, em que a desvinculação da companhia pública e a privatização da rede de água levou a bons resultados. “É um dos cases de sucesso nos últimos anos no Brasil.”
Apesar das muitas deficiências que costumam ser apontados na qualidade e na abrangência do serviço prestado, a Cedae tem ganhos expressivos: só em 2016 o lucro foi de R$ 379 milhões, contra R$ 249 milhões em 2015 – um incremento de 52%.
Satoko afirma que o argumento da ineficiência de sistemas públicos de esgoto não podem ser uma justificativa para a privatização.
“Seus defensores apresentam a privatização como a única solução, mas há muitos bons exemplos no mundo de uma gestão pública eficiente. Afinal, 90% do fornecimento de água no mundo é público”, lembra. “A solução não é privatizar, e sim democratizar os serviços públicos.”
O economista Vitor Wilher ressalta, entretanto, que privatizar não significa uma saída de cena do estado. Uma parte fundamental do processo é uma estrutura de regulação sólida, estabelecendo obrigações, compromissos, prazos, políticas tarifária.
“Não se trata de entregar para a iniciativa privada. Os contratos têm que estar muito bem amarrados, senão a empresa poderia praticar os preços que quisesse e descumprir os serviços que lhe foram designados. Isso é um ponto importantíssimo. Não basta só privatizar, é preciso regular.”
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Image captionNa Grécia, privatização de algumas companhias de água era uma das exigências do programa de resgate ao país.
Lógica do lucro ‘incompatível’ com serviços?
O estudo da remunicipalização de serviços aponta para incompatibilidades entre o papel social de uma companhia de água e saneamento com as necessidades de um grupo privado. Os serviços providos são direitos humanos fundamentais, atrelados à saúde pública e que, pelas especificidades do setor, precisam operar como monopólio.
Satoko considera que grupos privados não têm incentivo para fazer investimentos básicos que não teriam uma contrapartida do ponto de vista empresarial. No caso do Rio, por exemplo, investimentos necessários para aumentar o saneamento em áreas carentes não dariam retorno, considera.
“Com a concessão para grupos privados, a lógica de operação da companhia muda completamente. Os ativos não pertencem mais ao público. Ela passa a ter que gerar lucros e dividendos que sejam distribuídos para acionistas”, diz Satoko.
“O risco é enorme. Sistemas de água não pertencem ao governo, e sim ao povo. Se esse direito se perde, torna-se mais difícil implementar políticas públicas.”
A discussão necessária, considera Satoko, é como tornar uma companhia de saneamento mais eficiente e lucrativa para a sociedade. Quando a dívida pública se estabelece como prioridade, não há mais espaço para esse debate.
Nos últimos anos, vemos fortalecer o discurso da necessidade de privatizações como solução para os graves problemas sociais que passamos. Seja por meio das Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou mesmo de tentativas de privatizações de empresas estatais, já foram privatizados aeroportos, companhias de eletricidade e portos, entre outros setores estratégicos.
Mais recentemente, em 2015, foi lançado um edital para a privatização da Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Piauí (Agespisa), um projeto de lei para a venda de 49% das ações da companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan), e, neste ano, o Governo Federal decidiu que, para receberem ajuda financeira, os estados terão que privatizar estatais de água e esgoto, bancos ou energia, além de outras medidas.
Todas estas iniciativas vêm sendo colocadas como únicas alternativas. Mas segundo Leo Heller, relator das Organização das Nações Unidas (ONU) para Água e Saneamento, estas ações só irão piorar e muito a situação da população. Diz Heller: “O que podemos observar (no Brasil) é um discurso forte no sentido de privatização do sistema como grande saída para resolver o problema, mas não é essa a lição de experiências de privatização em outras partes do mundo. O que se observa em nível internacional é um movimento inverso, como processos de reestatização dos serviços de água e de esgoto”.
Reestatização da água: uma tendência global
Esta afirmação de Heller também é reforçada na pesquisa realizada pelas instituições Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos (PSIRU), Instituto Transnacional (TNI) e Observatório Multinacional, que publicarão o relatório: Veio para ficar: a reestatização da água como uma tendência global, em que se apresenta como tendência dos últimos 15 anos as reestatizações do serviço de água e esgoto.
A pesquisa constata que cada vez mais cidades, regiões e países por todo o mundo estão optando por fechar o livro das privatizações no setor da água e reestatizar serviços, retornando o controle público da gestão da água e do saneamento em muitos casos, isto é, uma resposta às falsas promessas dos operadores privados e ao seu fracasso em colocar o interesse das comunidades acima do lucro.
Nos últimos 15 anos, houve pelo menos 180 casos de reestatizações em 35 países, como Alemanha, Argentina, Hungria, Bolívia, Moçambique e França. Em contraposição, neste mesmo período, muitos poucos casos de privatizações de água ocorreram.
Este fenômeno de reestatizações vem se mostrando como uma tendência mundial. O número de reestatização nas cidades duplicou nos últimos cinco anos, o que demonstra a aceleração desta tendência.
Não é por acaso que a França, um dos países que mais promoveram reestatizações, somando até agora 49 cidades, foi o país com mais longa história de privatização da água e sede das maiores multinacionais do setor. Os municípios franceses viveram em primeira mão o “modelo de gestão privada” que exportaram para todo o mundo como solução.
Em Paris, capital da França, foram realizados, em 1984, dois contratos de concessões de 25 anos. Em 2001, ao se fazer uma auditoria nas empresas privadas que geriam o abastecimento d’água da cidade, foram detectadas inúmeras irregularidades com destaque para os preços abusivos cobrados, de 25% a 30% superiores aos custos. Em 2010, quando reestatizado, o sistema permitiu a redução das tarifas em 8%.
Nos Estados Unidos, país onde mais ocorreram reestatizações, com 59 cidades, não foi diferente. Um exemplo significativo é a cidade de Atlanta, onde, nos primeiros quatros anos (1999 – 2003) de privatização do sistema de água, houve a demissão de metade dos trabalhadores e as tarifas continuaram a subir ano após ano. A qualidade do produto baixou de tal forma que em algumas ocasiões os moradores eram forçados a ferver a água devido ao tratamento insuficiente e, muitas vezes, ela chegava às torneiras com a cor alaranjada. Em 2003, alegando má gestão, o sistema foi reestatizado.
As razões apresentadas nos países para as reestatizações são semelhantes por todo o mundo: baixa qualidade nos serviços, aumento brutal nas tarifas, falta de transparência financeira, desempenho medíocre das empresas privadas, subinvestimento e dificuldade em monitorar os operadores privados.
A situação do saneamento básico é bastante precária e precisa de soluções no sentido de fortalecer este serviço público e essencial para saúde da população. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014, somente 56% dos domicílios possuíam coleta de esgoto. O caso mais crítico é o da região Norte, onde 87,8 % das casas não têm coleta de esgoto. Em seguida vem o Nordeste, com 64%; o Sul, com 58,2%; Centro-Oeste, 58%; e o Sudeste, onde o percentual é bem diferenciado: 15,1% não tem coleta.
A privatização não resolve estes problemas. Ao contrário, os intensifica. Representa a lógica do lucro acima de tudo, não importa se milhares de pessoas vão morrer por falta de saneamento. O que importa mesmo é se o balancete financeiro da empresa vai ter lucros exorbitantes. O lucro acima da vida.
Os governos, financiados em suas campanhas por grandes setores empresariais, tentam retribuir os “favores” entregando a estes empresários nossas riquezas a preço de banana. Com discursos enfatizando a eficiência e a gestão, na verdade só estão pensando em favorecer seus grupos econômicos. Quem sofre é a população mais carente.
“A luta contra a privatização do serviço de água e esgoto é uma luta em defesa da garantia do acesso à água e à coleta de esgoto aos mais pobres, porque se privatizarem, além de o serviço piorar, haverá demissão em massa dos trabalhadores, precarização do trabalho e aumento abusivo nas tarifas”, afirma, em nota, a diretoria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Urbanas da Paraíba (Stiupb).
É necessário desenvolver uma ampla campanha de informação para a população demonstrando as consequências das privatizações. Em todos os lugares onde se procederam estas iniciativas a qualidade do serviço piorou e ainda se teve que pagar mais por ele; sem contar que houve precarização dos empregos e o aumento do desemprego.
83% da população britânica são a favor da nacionalização da água, 77% da eletricidade e do gás e 76% do transporte ferroviário
Na década de 1980, durante o governo da primeira ministra Margaret Thatcher, a palavra de ordem na economia do Reino Unido era privatizar. Passados quase 40 anos, a insatisfação dos britânicos com o resultado das privatizações foi exposta por uma pesquisa que mostrou que 83% da população são a favor da nacionalização da água, 77% da eletricidade e do gás e 76% do transporte ferroviário.
Para os britânicos, os grandes grupos econômicos prestam serviço de má qualidade, ignoram as necessidades dos consumidores e priorizam, apenas, o envio de lucros exorbitantes aos seus acionistas.
Integrante da Internacional de Serviços Públicos (ISP) e secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Junéia Batista, considera a avaliação negativa dos britânicos absolutamente correta. Segundo ela, em todo o mundo, “as privatizações repassam as riquezas naturais para os grupos internacionais que, em contrapartida, devolvem péssimos serviços para a população”.
No caso britânico, o relatório da empresa Cuttil, que fez a pesquisa sobre os serviços privatizados, mostrou que, com as taxas atuais de investimentos, a empresa privada de água e saneamento, por exemplo, levará 357 anos para renovar a rede de abastecimento de Londres, enquanto no Japão o processo levaria apenas 10 anos.
E foi justamente esse modelo de privatização que mercantiliza os serviços públicos reprovado pela maioria dos britânicos que inspirou o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) a iniciar um processo de privatização no Brasil na década de 1990 e que, agora, o ilegítimo Michel Temer (MDB-SP) quer ampliar, diz Felipe Araújo, engenheiro civil da Eletrobras/Furnas e diretor da Associação dos Funcionários de Furnas (ASEF).
“Foi exatamente da Grã-Bretanha que o governo FHC trouxe o modelo de privatização e mercantilização do setor elétrico brasileiro e agora o governo Temer busca aprofundar sem a devida discussão técnica, desconsiderando importantes exemplos mundiais, como a realidade britânica”, diz Felipe.
As empresas privadas têm interesses e visam lucro a curto-prazo, enquanto uma empresa estatal tem de ter cuidado com o bem público
Para o coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP), José Maria RangeI, o Brasil está na contramão da história.
“Enquanto o mundo estatiza os serviços essenciais para a população, o Brasil privatiza tudo porque há no poder hoje um governo usurpador e sem compromisso com a sociedade”.
O secretário de Meio Ambiente da CUT, Daniel Gaio, alerta para o risco da privatização da Eletrobras e as consequências da venda do patrimônio público não apenas para o sistema elétrico, mas também para o controle da água, que passará a ter um preço definido pelas empresas privadas, uma vez que parte considerável da energia gerada no País vem das hidrelétricas.
“As empresas que estão por trás disso não querem a privatização apenas pelo valor da tarifa dos serviços e sim pelo domínio dos bens naturais”, afirma Daniel.
Segundo ele, esse governo golpista e sua política neoliberal quer privatizar bens públicos e ainda por cima colocar preços – mercantilizar – os bens públicos.
O secretário de Meio Ambiente da CUT alerta ainda para um Projeto de Lei (PL) que está tramitando na Câmara dos Deputados – que pode ser alterado para Medida Provisória (MP) – que incentiva a privatização dos serviços municipais da água, incluindo o saneamento.
Pelo PL, o município fica obrigado a oferecer suas companhias de água para o setor privado e se não conseguir interessados, aí sim poderia oferecer as empresas estaduais, como a Sabesp, por exemplo.
“Há uma pressão das grandes empresas que financiam as campanhas eleitorais para aprovação desse projeto que facilita e incentiva os municípios a privatizarem a água”, conta Daniel Gaio.
Educação e saúde
O engenheiro Felipe Araújo, diretor da Associação dos Funcionários de Furnas (ASEF), alerta para outro ponto, o falso argumento dos golpistas de que a venda das estatais gerará receita para a saúde e a educação, com o pagamento de impostos.
Felipe lembra que o teto dos gastos públicos impede a utilização desses recursos, e, além disso, as grandes empresas enviam seus lucros para os países onde elas pagam menos impostos.
Desestatização no mundo
O processo de reestatização dos serviços públicos também é apoiado pela população da Argentina, Estados Unidos, França e outros países da Europa.
No ano 2000, os franceses quiseram a volta da estatização da água, e mais recentemente, Buenos Ayres e outras cidades argentinas querem a ‘desprivatização ’ desse serviço.
Margaret Thatcher X Sindicalistas
Uma das mais polêmicas lutas contra o processo de privatização no Reino Unido, ocorreu quando a então primeira-ministra Margaret Thatcher comprou briga com os mineiros de carvão em violentos protestos envolvendo trabalhadores e as forças policiais.
Em 1984, após quatro meses de greve dos mineiros, Thatcher mantinha uma postura irredutível em relação às exigências dos mineiros, que protestavam contra o encerramento de dezenas de minas.
A greve, marcada por vários confrontos violentos entre a polícia e os piquetes, só terminou no ano seguinte, em que foram fechadas diversas minas de carvão. As que sobreviveram foram privatizadas, mas ao longo do tempo acabaram também fechadas.
O poder dos sindicatos se quebrou, dezenas de milhares de trabalhadores perderam seus empregos e a produção de 130 milhões de toneladas ao ano de carvão caiu para 17 milhões de toneladas.
Os setores da economia que dependiam do carvão, como as usinas elétricas, passaram a comprar o produto importado mais barato.
Assim, o Reino Unido se tornou a “Meca” das privatizações em que a visão socialista cedeu para a era de individualismo.